segunda-feira, 29 de setembro de 2008

O Extraordinário é tão comum (basta querer vivê-lo todos os dias...)


Minhas costas doem. Primavera: segundo a medicina chinesa são comuns as dores musculares. Com sono e tendo que acordar cedo no dia seguinte, quase deixo o cotidiano me fazer esquecer o extraordinário minúsculo e mágico dos momentos em que o tempo é suspenso sem que o percebamos.
Acordei hoje com os cachorrinhos chorando. Pulei da cama assustada e, para variar, atrasada. Vesti uma roupa bonita, separada no dia anterior, para abrir bem a semana. Me troquei, mas senti falta de algo que complementasse o meu visual.
Do emaranhado de colares me saltou um aos olhos, que há muito tempo eu não usava. Não sei por que resolvi colocar aquele colar especial, feito por minha amiga Iana – índia fulni-ô porreta, irmã de alma, dessas que em menos de um dia a gente já confia sem saber.
Coloquei no pescoço a lembrança (feita com dentes de boto – para atrair fortuna) que ela me deixou antes de voltar para sua terra natal em Pernambuco, e só então senti que estava tudo certo e que eu podia inaugurar a semana me sentindo bonita.
Pensei na Iana o dia todo. Logo pela manhã, depois de ter que ir contrariada para uma comissão de seleção de projetos de cultura popular em um hotel da cidade (pois ninguém me havia avisado disto antes), conheci uma menina que também era de Pernambuco e mostrei o colar feito por minha amiga Fulni-ô. No almoço continuei lembrando muito da Iana sem nenhuma razão...
No final da tarde, como o carro do Ministério da Cultura não foi me buscar (como havia sido combinado), acabei preferindo voltar a pé para onde meu carro estava estacionado. Na verdade, até pensei em pegar um ônibus, mas como estavam todos lotados, desisti...
Fui andando (e como caminhar pela cidade é bom!) e, sem ver, já estava em outra freqüência, bailando, fazendo das buzinas apressadas dos carros cantigas de roda e vendo nos faróis vermelhos e verdes, balões de festas juninas.
Fui pela rodoviária em direção à Esplanada dos ministérios – um dos meus lugares favoritos da cidade. Passando pelo Museu da República, escuto um “ Psiu!” vindo da parada de ônibus. Quando olho, para minha surpresa, vejo um primo da Iana, a minha amiga fulni-ô! Nossa! Não o via há tempos, desde que saí da FUNAI!
Claro que, antes mesmo de perguntar como ele estava, interrogo exclamando e segurando o meu colar: “E a Iana? Pensei nela o dia todo não sei por que!” Ao que ele me responde com naturalidade: “vai ver que ela também está pensando em você!”
Pergunto se ela está bem e ele responde que sim – os fulni-ô estão no tempo da celebração do Ouricuri – ritual religioso que começa em outubro e vai até dezembro e sobre o qual nós, os não-índios, não podemos saber nenhum detalhe ( e, provavelmente por isso mesmo, por manterem em segredo seus rituais sagrados, os fulni-ô sejam um dos únicos povos indígenas do nordeste a manter sua língua materna viva até os dias de hoje).
Ele me oferece o endereço dela, eu anoto prontamente e sigo meu caminho lembrando de cada ensinamento silencioso que aprendi com ela. Lembro dela me falando sobre seu deus que não tem cara, que não tem nome (pelo menos ela não o revelou a mim), que está nas árvores e nos rios, nas luas e nos sorrisos, no vento embaraçando os seus cabelos lisos e negros, no canto dos pássaros, no brilho nascente da estrela da manhã – Toi-ã-nê (o nome da sua filha, que eu não sei como se escreve, mas que sei exatamente como pronunciar...).
Me emociono e, ainda caminhando em nuvens, falo com ela em pensamento, imaginando como lá de onde ela está, o céu deve estar mais limpo, desnudando as constelações que eu somente conseguiria ver do meu computador utilizando o Stellarium...
Fico feliz, feliz, feliz por tudo isso ter acontecido e por uma coisa que provavelmente passaria despercebida por muitas pessoas, significar tanto para mim...
Fico contente por durante alguns minutos eu ter esquecido de tudo para viver a emoção desse momento de reencontro invisível e inesperado em que Brasília e Águas Belas se tornaram o mesmo lugar fora do tempo, e eu pude ver a fumaça do cachimbo da Iana se comunicando com os deuses que habitam cá e lá e todos os lugares e também pude ouvir baixinho a sua risada de mulher vivida rindo da minha inocência, graças a todos os deuses e deusas mantida, quando eu me lembrei, já indo para casa, de algo que uma outra querida amiga-libélula me havia dito há alguns dias atrás:
“ - Vc é otimista?
- Sim, talvez... Mas que culpa tenho eu se nem tudo no mundo está perdido?”